[Artigo] Quando os sentidos não fazem mais palavras



Tem sido tempos difíceis para os brasileiros, mais ainda para os que gostam de encher a boca para xingar. Pode até existir, como aprendemos com nossxs professorxs de Português, período sem verbo, oração sem sujeito, mas debate político sem substantivo qualificador (antigo adjetivo) é impossível.

Perdidos e desamparados como nos encontramos, estamos carentes de vocabulário conciso para ofender. Nesta falta de opções, recorremos ao que temos mais próximo, que é a cegueira da ignorância pelo uso de ofensas que não fazem sentido nenhum, assim como a nossa cruel e recente realidade.

O fato e o dito
Se, por um lado, a quantidade de críticas sociais em textões no Facebook cresceu exponencialmente a partir as explosivas manifestações das Jornadas de Junho de 2013, cresceu também, em igual proporção, o número de movimentos combativos à estas críticas. Desde então, o que temos visto nas redes é o uso cada vez mais frequente e solidificado de termos como coxinha, mortadela (é possível encontrar um bom histórico destes dois no ótimo texto de Renato Bittencourt, “A culinária da Política”), petralha, bandido de estimação, esquerdista, direitista, comunista, conservador, ditadura gayzista, esquerdopata, liberal, liberalóide, feminista, feminazi, mimizento, vitimista, enfim, todos eles para qualificar os “adversários”.

O curioso e preocupante nisto tudo é o problema do deslocamento grosseiro do significado histórico destes termos. Este pequeno texto não tem a intenção de especificar cada um deles – ainda que o dedo coce para fazê-lo – mas é necessário colocar algumas coisas no lugar.

A partir das diversas transformações da sociedade, os governos mudaram para adaptarem-se as novas configurações políticas, fruto dos embates e disputas das diversas forças no seio da sociedade. Dentre elas, as que marcaram o período contemporâneo são a direita e a esquerda. Junto com elas, vieram seus defensores e críticos, interna e externamente aos movimentos das militâncias políticas. Como indica o cientista político italiano Norberto Bobbio em uma de suas obras de referência “Esquerda e direita: razões e significados de uma distinção política”, os termos esquerda e direita povoam o imaginário popular e acabam englobando comportamentos diversos e não necessariamente os do âmbito da política, mas vão além, abarcando principalmente aspectos culturais.

Brasileiro, demasiado brasileiro
Outro autor chamado Marcel Gauchet traz uma contribuição importante para entendermos a solidificação das ofensas e xingamentos na atual disputa de narrativas políticas no Brasil. O fato de que os termos, em épocas de crises são re-traduzidos através do revisionismo histórico (reinterpretação dos fatos históricos, distorcendo-os), trazendo e criando para cada contexto o sentido que bem entende.

Estamos frente a um conjunto cada vez mais expressivo de pessoas que defendem e pedem o retorno de práticas políticas que já mostraram seus péssimos resultados no passado (Liberalismo econômico, conservadorismo social, Fascismo, Ditadura, Regimes de exceção). Além disso, esta ideia de que “antigamente era melhor” romantiza o passado e faz com que o que aconteceu seja minimizado.

Temos então que essa crise emocional tem origens na crise ideológica, na reorganização dos mapas mentais, bagunçadas pelas sucessivas crises que o Capitalismo cria e que viabilizam sua sobrevivência. Esta crise é uma crise dos modos de resolução dos conflitos sociais básicos, falhando sucessivamente em romper com a lógica Capitalista de exploração, geração e lucro a qualquer custo e progresso como valor absoluto em si mesmo. É uma crise das antigas soluções para novos problemas.

“O que é ideologia?”
Uma série de ótimas reportagens do Jornal do Comércio, de Recife (Parte I, Parte II, Parte IIIParte IV, Parte V, Parte VI – Relatório Final), sobre uma pesquisa do Instituto Uninassau, realizada em 48 bairros da periferia de Recife, buscou entender as visões de mundo dos eleitores das classes C e D e revelou que uma das principais preocupações destes setores da sociedade não é se você é petralha ou manifestoche; a preocupação é outra: “Quando esta confusão toda vai acabar?”.

Enquanto o mundo gira e nós giramos em torno de nós mesmos, os resultados da pesquisa mostram o desprezo para com as instituições do Estado. Para eles, o governo tem a obrigação de “fazer por nós, mas não faz”. Culpam todos os entes federativos: Federal, Estadual e Municipal. Entre os eleitores maduros, está presente forte descrédito. Entre os jovens, apatia. É como se os governos não existissem, pois eles não reconhecem as ações dos governos.

Para parte majoritária dos entrevistados, não existe Esquerda e Direita. É ‘tudo uma coisa só’. Eles, em sua maioria, mostram desinteresse pela temática ideológica e dizem que o que importa é a existência de um governo eficiente, um ‘governo que faça por nós’. Muitos riem, consideram engraçado o debate sobre ideologia. Eles mostram claramente que o debate sobre ideologia não é importante. O que é importante ‘é quem faz por nós’”. “Todos céticos, desconfiados com o futuro do Brasil. Os jovens revelam pouca esperança, mas acreditam em um futuro melhor. Para eles, é tanta confusão que não sabem quando o Brasil sairá dela. Mas continuarão tentando. Eles estão descrentes com o futuro, atrelado ao pessimismo está a esperança de que algum dia ‘as coisas vão melhorar’”.

A mudança radical da sociedade como futuro inevitável
Finalizando, é importante deixar claro duas coisas. A primeira é que existe uma geração de pessoas que, por um conjunto de fatores sócio-histórico-econômico-políticos, não conseguiram corresponder às expectativas modernas do que se deve fazer, do que se deve ter e de como se deve ser na sociedade Capitalista contemporânea. Isto levou a um tipo de insegurança que encontra vazão nos extremismos sociais e políticos, como na defesa de valores retrógrados e ultrapassados, além de fomentar nestas pessoas uma saciedade social a partir da defesa de discursos de ódio.

Segundo, faz parte da dinâmica social humana e o conservadorismo (que é um misto de frustrações por não conseguir corresponder a expectativa dos valores Capitalistas hegemônicos e também – e principalmente – resistência à mudança) ao tentar, a qualquer custo, manter esta estrutura torna-se, portanto, desumano, anti-progressista, anti-histórico e uma afronta ao fluxo cultural. É a vontade da perpetuação da tradição e da lógica social estabelecida, diametralmente contrária a mudança (ou revolução), ou seja, a luta pela transformação da insatisfação.

Então, nada mais político do que a desilusão com a realidade. Ela pode fomentar, em um lado do arco-íris, desencantamentos, apatia extrema e conservadorismo ou, em sua melhor utilidade, já no pote de ouro, mudanças radicais, revoluções e transformações sociais e políticas significativas para a parcela da população que importa.

 


Tadeu Vinicius é Mestre em Sociologia pela UFBa e Professor da Rede Estadual de Ensino da Bahia, com interesse por temas relacionados a Política e Educação. Mantém o blog tvsuigeneris.blogspot com temas relevantes da política nacional.